
Finda-se o ano. Os dias são longos e ensolarados. As mulheres exibem vaidosamente a pele bronzeada. É verão. As noites ficam mais atraentes, iluminadas por milhares de luzes coloridas e enfeites para todos os gostos. As árvores estendem os braços para ser, também, ornamentadas, contribuindo ainda mais com este clima de festa. Enfim, não há dúvidas de que é esta a melhor época do ano.
Aproveito a ocasião e entrego-me, sem condições ou reservas, ao Cristo que está procurando lugar para nascer. Ofereço minha humilde manjedoura e aguardo que o Anjo Gabriel entre pela porta saudando: “Ave, cheia de graça, o Senhor é contigo”.
Porém, pela porta que deixei entreaberta (imprudente que sou) entra um garoto, aqui das redondezas, pedindo dinheiro emprestado para comprar gás. Ah, não é a primeira vez que ele faz isso, aposto como o dinheiro não é para o gás! Pensa que me engana. Dias atrás, quando eu estava de coração mole, dei-lhe o dinheiro e ele ficou mal acostumado, já está aqui outra vez. É assim que eles se transformam em pivetes. Por causa dessas esmolas, contribuímos para a formação de um futuro marginal. “Só um trocado, tia”, insiste ele. Garoto insistente! “Dá licença, faz favor! Que esta crônica é para um anjo!”
O próximo que chegou foi um velho. Tinha as vestes sujas e cheirava mal. Outros, que o acompanhava, pararam nas casas da vizinhança. Precisavam de um lugarzinho para tomar um banho, talvez um copo de leite morno, um carinho... Mas, sabe... minha casa não é tão grande, eles são em um número até razoável, não poderia acomodá-los aqui... “Nem por poucos instantes?” sabe... hoje em dia a gente ouve cada coisa, de mendigos que matam mulheres e crianças, melhor não arriscar. Ensino a eles o caminho do albergue que fica a cerca de uns 5 km. Um pouco longe, mas eles são acostumados a andar, logo chegam.
Deixa eu me concentrar em minhas orações, quem sabe o anjo aparece. Arrumo os enfeites da árvore, ajeito a decoração, quero tudo impecável. Com certeza, Jesus ficará contente. Bem servido, bem honrado, claramente, explicitamente! Espero que os mendigos não apareçam mais empurrando a porta, pedindo tudo!
E não apareceram. Quem chegou foi aquele rapaz filho da Márcia. A própria mãe o expulsou de casa. Há algum tempo começou a andar em más companhias, se envolveu com drogas e agora se diz arrependido. Vocês acreditam? Nem eu. Diz que precisa de um lugar para passar a noite. Aposto como arrumou alguma encrenca e agora está fugindo da polícia. Claro que não vou ceder. Mesmo diante daquele olhar comprido e daqueles olhinhos verdes que eu mesma vi nascer. Sabe como é, não quero complicação para o meu lado. Depois, ele deve estar colhendo o que plantou. Talvez isso lhe sirva de lição. Esses jovens têm que aprender que a vida não é fácil, isso aqui é uma pedreira; vencem os mais fortes, os que se esforçam, estudam e lutam por um lugar ao sol.
Enquanto o rapaz se afasta, como se já soubesse da minha reação, comento com a vizinha o episódio e ela me cobre de razões. Ah, o marido dela também tece comentários a meu favor. Diz que tem lido minhas crônicas e que eu sou uma pessoa (supõe ele) muito sensível.
Entro satisfeita com os elogios e até afasto uma idéia ruim que me ocorre: a de que eu havia matado Jesus (novamente) de decepção. Que ele, poderia ser o menino, o mendigo e até o drogado, que ele não manda mais avisos por anjos, que o próprio Cristo vem na forma mais simples e comum e eu refugiada nessas idéias de grandezas, não percebi....
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Luz e Sombra
"As duas faces de um anjo"











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